A Guerra na Ucrânia — “Porque saiu o Reino Unido da União Europeia?”  Por Carlos Matos Gomes

Seleção de Francisco Tavares

5 m de leitura

Porque saiu o Reino Unido da União Europeia?

 Por Carlos Matos Gomes

Em 23 de Abril de 2022 (original aqui)

 

O regresso da querela trinitária

Uma das mais conhecidas e absurdas separações políticas foi a que separou o império romano cristão do Ocidente (Roma) do império romano cristão do Oriente (Constantinopla) no século IV por causa da célebre e decisiva questão que ficou conhecida como a “Querela Trinitária”. Discutida no concílio de Niceia.

Os cristãos dividiram-se, em termos muito simples, por causa de uns duvidarem da divindade do Espírito Santo e considerarem o Pai superior ao Filho, e outros considerarem a unidade da Trindade.

A pergunta de sempre e até hoje é: Afinal separaram-se porquê se eram iguais e tinham a mesma visão do mundo com início numa semana de sete dias, no mesmo Deus que mandara Abraão sacrificar o filho só para lhe testar a obediência, entre tantos outros factos extraordinários, aos quais pouco alterava haver um Deus em três ou três num Deus?

Hoje, perante o comportamento do Reino Unido e da União Europeia quanto ao decisivo e de consequências não imaginadas conflito que tem lugar na Ucrânia, a pergunta, a minha pergunta, é, porque saiu do Reino Unido da União Europeia, ou: porque não aceitou a União Europeia as condições do Reino Unido para este permanecer no clube?

Isto é, o que distingue a parelha do populista Boris Johnson e do nacionalista Nigel Farage, os dois mais extremados promotores do Brexit, da senhora Van Den Leyen, dos senhores Mitchell e Borrell?

Os dirigentes do Reino Unido e da União Europeia têm o mesmo entendimento do papel da Europa no mundo, de subordinação aos Estados Unidos e de seguidismo da sua política para com a Rússia e a China.

Entendem que os Estados Unidos devem ser a potência dominante mundial e que esse domínio está ameaçado, por isso devem colaborar na estratégia dos Estados Unidos de bater o inimigo por partes: primeiro a Rússia, depois a China;

Entendem que a Ucrânia era e é um território de interesse estratégico para aí instalar um regime favorável ao “Ocidente”, que permitisse bases de ataque dos EUA próximos da Rússia (junto à fronteira) e por isso agem desde 2004: agiram para integrar a Ucrânia na NATO e na UE e promoveram a implantação de líderes afetos (caso da ação conjunta da Praça de Maidan);

Entendem que, sendo o regime político que implantaram desde 2014 em Kiev um regime benevolamente classificado de iliberal, de oligarcas, de perseguidor de minorias russas ou pró-russas, era no entanto “o seu regime”;

Entendem que, criada a casus belli para a intervenção russa com as perseguições e os massacres no Leste da Ucrânia (o Donbass), e desencadeada a guerra, esta deve servir para desgastar ao máximo o poderio militar, político e económico da Rússia, mesmo à custa dos sacrifícios do povo ucraniano;

Entendem que a exploração dos terríveis resultados da guerra através da mais intensa e insensível campanha de propaganda jamais desenvolvida a propósito de uma guerra, que a censura e a utilização de falsas imagens ou a criação de factos causadores de emoções são meios legítimos de conquistar a opinião pública dos seus cidadãos;

Entendem que a escalada da guerra, de modo a provocar mais imagens sensíveis, mais danos na Ucrânia com a finalidade de provocar o desgaste do inimigo é a estratégia adequada aos seus objetivos;

Entendem que o fornecimento de armas em quantidade e qualidade sempre crescente constituem o melhor processo de “ajudar” os ucranianos a servirem-lhes de carne para canhão, enquanto os glorificam e os mimam como defensores da sua liberdade e independência;

Entendem que nunca deve ser referida a palavra paz. Um interdito comunicacional.

Entendem que Zelenski, à semelhança de Bin Laden há uns anos, é uma excelente personagem para representar o combatente da liberdade — um São Jorge — e que milícias nazis do Azov são o correspondente da Al Qaeda do Afeganistão, os “freedom fighters”. Zelenski, certamente bem aconselhado por britânicos e europeus, pede armas, não se dispõe a pedir mediação, nem fala de paz, nem entende a Rússia como um vizinho com quem a Ucrânia (se sobreviver) terá de se entender.

Entendem que a utilização da Ucrânia para os seus fins pode justificar os riscos de um conflito com utilização de armas nucleares (o que têm insinuado de forma coordenada);

Entendem que esta guerra, com os inevitáveis os efeitos económicos devastadores que os dirigentes do Reino Unidos e da UE calculam, mas não revelam aos povos, servirão para impor uma ordem neoliberal na Europa, com a destruição do Estado Social, com o desvio de verbas para armamento, com a inflação que permitirá aos grandes grupos da oligarquia ocidental aumentar a sua riqueza e reduzir os povos a rebanhos de dóceis miseráveis.

Enfim, se os dirigentes do Reino Unido e da União Europeia estão de acordo com todas estas premissas e para este papel de sendeiros, porque raio se desentenderam como os velhos teólogos cristãos sobre a questão trinitária, que levou ao Brexit e de que hoje já ninguém se recorda. Porque saiu a Reino Unido desta União auxiliar dos Estados Unidos se nada distingue Boris Johnson da Trindade da UE? Onde anda o Nigel Farage, a treinar ucranianos, a vender gás e petróleo?

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O autor: Carlos Matos Gomes [1946-] é coronel reformado do exército, cumpriu três missões na Guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné, nas tropas especiais dos “Comandos”. Ficou ferido em combate e foi condecorado com as Medalhas de Cruz de Guerra de 1.ª e 2.ª Classe.

Capital de Abril pertenceu à Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné.

Investigador de história contemporânea de Portugal. É escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz. Autor de: Nó Cego (1982), Os Lobos não Usam Coleira (1995), Soldadó (1996), Flamingos Dourados (2004), Fala-me de África (2007), Basta-me Viver (2010), A Mulher do Legionário (2013), A Estrada dos Silêncios (2015), A Última Viúva de África (2017, Prémio Fernando Namora 2018), Que fazer contigo, pá? (2019), Angoche-Os fantasmas do Império (2021). Em co-autoria com Aniceto Afonso: Guerra Colonial (2000), Guerra Colonial – Um Repóter em Angola (2001), Portugal e a Grande Guerra 1914-1918 (2013), Os Anos da Guerra Colonial 1961-1975 (2010), Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo. Portugal, África do Sul e Rodésia na última fase da guerra colonial (2013), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. Uma História Diferente (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914 – 1915. As Trincheiras (2014), Portugal e a Grande Guerra 1917 – 1918. Uma Guerra Mundial (2014), Portugal e a Grande Guerra 1919-. O Pós-Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1918 – 1919. O fim da Guerra (2014), Portugal e a Grande Guerra 1914- O Início da Guerra (2014), A Conquista das Almas. Cartazes e panfletos da acção psicológica na guerra colonial (2016).

 

 

 

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